antes de começares a ler, quero deixar um alerta: não pretendo ferir suscetibilidades, não pretendo fazer uma condenação, não quero sequer fazer um julgamento. sinto apenas a necessidade de “botar cá para fora” as minhas inquietações.
numa perspetiva meramente estatística: qual o número de pessoas que se suicidaram que cabe conhecer a cada um de nós?
recentemente, mais uma pessoa que conhecia acabou com a sua vida (a terceira num espaço de 3 anos).
nas últimas semanas tenho lutado por controlar o sentimento de raiva que esta situação me despertou. resultado: uma terrível baixa das minhas defesas - em consequência de noites mal dormidas-, e uma acentuada falta de concentração.
não consigo entender o que passa pela cabeça das pessoas que tomam essa decisão. não consigo perceber se é angústia, dor, incompreensão, isolamento ou impulso. mas há uma característica que parece ser consensual e transversal a todas as situações de suicídio: o egoísmo.
a falta de empatia para “quem fica” de coração despedaçado e mente cheia de dúvidas.
é uma partida inesperada e cujas causas ficam, na maior parte das vezes, por descobrir.
tenho uma amiga que defende que o suicídio, da pessoa em causa, foi um ato de coragem. entendo que hajam percetivas diferentes da minha, mas para mim coragem é acordar cada manhã sabendo que o dia não vai ser fácil, mas mesmo assim ter capacidade para o enfrentar. desistir e abandonar a luta que é viver, não é coragem, mas sim cobardia.
tenho-me agarrado à ideia da existência de problemas psicológicos não diagnosticados. uma forma plausível de acreditar que a decisão esteve para além da vontade da pessoa.
para além da pessoa que decide partir sem avisar, existem as pessoas que carecem de sensibilidade e bom senso e que vão questionando as pessoas mais próximas da vítima: “não repararam em nada; não viram os sinais; não seria uma situação anunciada? o que esperam estes obter como resposta? um "claro que reparei, mas deixei que se matasse!"?
pois como todos sabemos, familiares e amigos necessitassem certamente de (mais) motivos para fazerem crescer em si uma culpa sem fundamento. e não me vou estender aqui com a curiosidade mórbida daqueles que querem saber todos os pormenores.
por último, quero falar das mães e dos pais, que não estando preparados para verem partir os filhos, seja por que causa for, levam com o choque destes partirem por decisão própria. chamando a si, mesmo que de modo inconsciente, toda a responsabilidade, por não os terem conseguido proteger.
uma morte tem sempre danos colaterais; um suicídio agrava-os e perpetua-os.
sempre gostei de estações e aeroportos. conseguimos ali, de forma concentrada - versão sunquick da vida, sentir um pouco da diversidade humana.
hoje estava na estação à espera do comboio e enquanto olhava para os carris e vagueava nos meus pensamentos veio-me a memoria uma situação que aconteceu há cerca de dois anos: um puto (21 anos) super maduro, divertido e com muita pinta (com quem conversava sem nunca lhe atribuir a idade real - tirando a imberbe beleza do seu sorriso) tinha-se suicidado, atirando-se a um comboio de mercadoria.
na zona em que vivo há em média uma situação por ano deste modo de pôr termo à vida. este miúdo de todo não se enquadrava no perfil (que eu tinha idealizado) das pessoas que desistem da viver.
em simultâneo com esta reflexão, veio a lembrançade um pavor imenso que tinha de mim mesma nos tempos do liceu. um receio que só muitos anos depois fui capaz de partilhar com outra pessoa.
fiz o secundário numa localidade distinta daquela em que residia. o meio de transporte utilizado para ir para a escola era o comboio. enquanto esperava por aqueleque me levaria ao meu destino, sempre que passava um comboio sem paragem (assim anunciava o sr. da cp) eu sentia uma forte inquietação.
ouvia o som intenso comboio a aproximar-se a alta velocidade e tinha uma forte vontade de me levantar e correr até ele.
nada teve a ver com vontade de me matar. não consigo ainda hoje explicar o que sentia. era um desejo irracional. o som excitava-me, a velocidade puxava por mim. eu conseguia visualizar-me a levantar e correr em direção a esse som que me chamava. parece loucura eu sei. sempre pensei o mesmo.
sempre que tal acontecia concentrava-me e fixava as minhas mãos com força, por debaixo das pernas, no banco frio da estação. nunca estava sozinha, mas nunca ninguém reparou nestes meus momentos de isolamento.
na altura pensei contar à minha mãe, mas desisti da ideia. conhecendo-a iria certamente dizer que era o espirito de alguém no meu corpo. sim, ela acredita nessas coisas. ela e as irmãs. por exemplo, tive um primo claramente toxicodependente que quando tinha crises de ressaca a minha tia dizia que estava a ser possuído pelo espírito do meu avô!
pensei contar às minhas amigas, mas como qualquer adolescente, tinha medo do que aquilo ia dar. por isso calei e lidei o melhor que soube com a situação, e vamos assumir que lidei muito bem, visto que não mergulhei em nenhuma linha da refer.
com o passar dos anos, sem saber porque este desejo foi acalmando. é verdade que agora ando muito menos de comboio, mas quando ando, já não me surgem estes pensamentos.
hoje tive tempo para pensar em tudo isto. hoje pensei que aquele puto com uma sabedoria estranha para a idade, talvez não quis por fim à sua vida; talvez, apenas não foi capaz de controlar os seus impulsos.